No meio do doutorado tinha uma pandemia!


 
Por Paula Francisca 
 
Peço licença ao(à) leitor(a) para ocupar o espaço em tela, e tomar um pouquinho do seu tempo, para apresentar um breve relato da experiência de ter, no meio do doutorado, uma pandemia e, em meio a uma pandemia, desenvolver, defender e concluir uma tese de doutorado. 
 
Ingressei no curso de doutorado em Educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG) em 2018. Tudo parecia seguir o seu curso normal: por causa das poucas oportunidades de formação em nível de doutorado na minha área de formação, eu teria que me deslocar de Montes Claros, norte de Minas Gerais, para a capital mineira, Belo Horizonte; na região, os níveis de desemprego e de desigualdade social crescendo; o financiamento para a educação pública e para a saúde nacionais diminuindo; os estímulos para oferta de cursos e carga horária a distância crescendo; as formas de intensificação e precarização do trabalho ganhando novas formas, com a onda da Indústria 4.0, com a uberização do trabalho e com a demanda para produtividade; os discursos sobre a necessidade de empreender, inovar e “ser flexível” em alta… Como se pode ver, tudo dentro do normal, no padrão “sociedade capitalista”. 
 
Iniciei a minha rotina de estudos, com o “privilégio” de estar afastada das minhas atividades laborais. Digo “privilégio”, porque esse não é um “direito” assegurado a todos os trabalhadores. Inclusive eu, durante praticamente todo o meu mestrado, conciliei, obrigatoriamente, as atividades do trabalho e o curso, além de enfrentar uma distância geográfica de quase 700 km entre o meu local de trabalho e o meu local de estudos. Mas, costumo dizer que a melhor palavra não é “privilégio”, mas sim condição para ser gente, para ser humano, para poder desenvolver. Porque, cumprir jornadas de trabalhos intensas e extensas como essas que as leis nos estipulam e, ainda, estudar, para se preparar para atender às demandas deste mesmo trabalho, é fazer um esforço hercúleo, sobre-humano. 
 
No primeiro e no segundo ano do doutorado, cursei as disciplinas necessárias para a minha pesquisa e para cumprir o currículo do curso. Para isso, tive que deixar minha casa e ir morar em outra cidade. Com todos os requisitos atendidos e com a elaboração da teoria que fundamentava a minha tese em andamento, o cronograma da pesquisa indicava março de 2020 como o início da pesquisa de campo. Mas, exatamente neste mês, a Anvisa reconheceu que o Brasil era um dos países afetados pela pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), causador da doença Covid-19 e, na falta de imunizantes e de tratamento efetivo contra a doença, recomendou o isolamento social como medida de prevenção e controle. Os calendários das instituições de ensino foram suspensos. Uma parte da população ficou em casa e tomou os cuidados higiênico-sanitários, porque tinham condições materiais para isso; outra parte significativa continuou nas ruas, trabalhando e/ou morando sem as condições e medidas de proteção adequadas. 
 
Assim como boa parte da população, inicialmente acreditávamos que esse isolamento emergencial duraria umas duas semanas. Mas, a situação se arrastou. O trabalho nas instituições de ensino passou a ser desenvolvido por meio remoto, incluindo as aulas. E eu me vi, em março de 2021, com a pesquisa de campo pendente e sem a mínima possibilidade de iniciá-la de forma presencial. O prazo que eu tinha para apresentar o trabalho final e retornar às atividades laborais era fevereiro de 2022. Por isso, foi necessário rever meus instrumentos e metodologia de pesquisa e incluir entrevistas a distância, por meio de uma plataforma virtual, como instrumento de coleta de dados. 
 
Sob tais condições, a pesquisa foi significativamente afetada. Além da suspensão da pesquisa de campo, de março de 2020 até março de 2021, a pesquisa bibliográfica também ficou comprometida e sofreu ajustes, para adequar-se à nova situação. Inicialmente, essa distância me pareceu interessante, porque eu não precisava morar mais em outra cidade. Poderia ficar na minha casa, não precisaria passar longas noites dentro de um ônibus e ficar distante de minha família. Mas, logo percebi que, desenvolver a pesquisa distante fisicamente das bibliotecas, do universo em estudo, dos sujeitos da pesquisa, dos professores e demais trabalhadores da FaE-UFMG seria complicado. Os limites estabelecidos pela distância física, pela morosidade em receber respostas por e-mail ou telefone, devido à alta que todos estavam tendo para colocar as atividades em dia por esse canal, falavam por si só e me colocavam em constante situação de ansiedade e apreensão. 
 
Além disso, cumprir a quarentena determinada pelas autoridades públicas, sob a incerteza com relação ao futuro, em meio ao caos causado pela Covid-19 e acompanhando os números, cada vez maiores de infecção e de óbitos no país e no mundo, afetou, sobremaneira, o meu ritmo de vida e os ritmos pré-definidos para a condução da pesquisa. No ano de 2021, permaneci enfrentando os mesmos problemas. Considerando esse contexto, os participantes das entrevistas foram convidados por meio de um e-mail, que apresentou e explicou a pesquisa, seu tema, etapas e procedimentos. 
 
As entrevistas remotas foram agendadas com cada um dos docentes dispostos a participar da pesquisa. As entrevistas foram gravadas em áudio e vídeo. A plataforma utilizada para realização e gravação das entrevistas foi o Google Meet, pelo fato de os sujeitos da pesquisa estarem familiarizados com esse recurso, já operacionalizado institucionalmente, mesmo antes da pandemia, tendo seu uso potencializado com a implementação do ensino remoto emergencial. A maior parte das entrevistas ocorreu no horário inicial agendado pelos entrevistados, sem interferências externas, mas, em alguns casos, foram registrados problemas: de conexão, com perda de imagem ou áudio; interrupção de outras pessoas (como, por exemplo, dos filhos), já que os entrevistados estavam em seu ambiente privado; necessidade de remarcar horários por compromissos imprevistos surgidos por motivos do emprego ou pessoais. Inclusive, uma das entrevistas teve que ser remarcada três vezes, pois se tratava de um sujeito que atuava em um cargo de gestão e que, frequentemente, tinha que mudar a sua agenda devido à alta demanda de atividades. Mesmo com todos estes problemas, as entrevistas foram realizadas a contento e renderam à pesquisa os frutos esperados. 
 
A duração das entrevistas variou entre 39 minutos e 1 hora e 40 minutos. A previsão inicial era de que durariam 45 minutos. Fatores como a disposição do docente em falar sobre o tema, o volume de informações que ele trouxe para agregar à pesquisa, a estabilidade da conexão da internet e a disponibilidade de tempo informado a priori influenciaram nessa variação de tempo. 
 
Como as entrevistas foram realizadas durante a situação de isolamento social, até mesmo os momentos de conversas e trocas de experiências com outros trabalhadores lhes estavam sendo negados e também a mim, como pesquisadora. Todas as relações mantidas no espaço laboral e no meio acadêmico - que deixaram de ser um espaço concreto e palpável e passaram a ser “digital” - tornaram-se demasiadamente tecnológicas, mecanizadas, virtuais e distantes e, em grande medida, vazias das trocas que caracterizam ações e relações humanas. Ao fim de uma das entrevistas, o entrevistado falou sobre um dos efeitos dessas relações mecanizadas para a sua vida:
Eu acho que eu falei demais [risos]. Eu acho que é por causa da pandemia. Eu não converso com ninguém há tempos. Como nós não saímos de casa quase nunca, por causa do isolamento social, de vez em quando, coloco meus filhos no carro e quando veem alguém ficam assim: “ei, ei, ei...” [risos]. Eu estou como eles. A ânsia de conversar, de falar e contar e não sei o quê... Por isso eu acho que eu falei até mais do que precisava (P3)
Alguns entrevistados também expressaram como foram afetados e o quanto necessitavam de relações presenciais e físicas com outros, para falarem sobre as atividades, suas dificuldades, para serem ouvidos e interagirem com seus pares e seus alunos. Outros, quando foram questionados sobre o que os seus colegas pensavam sobre determinado assunto, não souberam responder. Um deles, percebendo, naquele momento, o alto grau do distanciamento que se encontrava em relação aos outros trabalhadores, afirmou: “(...) Eu acho que preciso falar mais com meus colegas” (P4). Mas, infelizmente, diante das insistentes investidas de institucionalizar e expandir o teletrabalho, a educação a distância e o ensino híbrido, corre-se sério risco de que relações, cada vez mais isoladas, solitárias, mecanizadas e alienadas/estranhadas sejam estabelecidas. 
 
Por fim, gostaria de lembrar que, entre as milhares de pessoas que morreram, perdi conhecidos, parentes e colegas de trabalho. Vi outros tantos sofrerem com sequelas graves da doença; outros com o desemprego e dificuldades financeiras que não os permitiam, nem mesmo, garantir uma refeição ao final do dia. Eu também senti os efeitos da Covid-19. Sem acesso à vacina, fui infectada pelo vírus e, apesar de ter tido a minha saúde física e mental abalada por cerca de dois meses, sobrevivi. Outros, infelizmente, não tiveram a mesma sorte que eu… Vi também que, para sustentar o processo de reprodução do capital, o capitalismo serve-se de medidas que têm, como horizonte, a extração de mais valia, não importam as epidemias, as pandemias, o problema do aquecimento global, do desmatamento, da poluição, da desigualdade social, da desigualdade digital que conduziu a um nível, ainda maior, a falta de acesso à educação, da desistência e da evasão escolar, da violência, da exploração do ser humano, da falta de saneamento básico, do não acesso à saúde, das más condições de vida e de higiene, da fome e da morte dos trabalhadores. Vi que não importa a vida humana. O capitalismo rebaixa, paulatinamente, as condições de trabalho e de vida, a fim de garantir maiores possibilidades de aprofundamento da expansão da exploração da força de trabalho e, consequentemente, de aumentar as taxas de lucro e de valorização do capital.
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Paródia do poema “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade. Por isso: Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas tão fatigadas, do meu corpo solitário e da minha esperança abalada Nunca me esquecerei que, no meio do doutorado, Tinha uma pandemia Tinha uma pandemia no meio do doutorado.2 Mas, à revelia de tais condições, sei que nem tudo está sob o controle do capital, pois quem transforma a natureza, produz e reproduz, somos nós. Espero que outros também percebam isso e que, juntos, possamos, não apenas retirar as pedras dos nossos caminhos, mas quebrá-las, levá-las a definhar e construir nossos próprios rumos.
Paula Francisca da Silva é graduada em Pedagogia, especialista em docência do ensino superior e em educação a distância e mestre e doutora em Educação. Atua como pedagoga no Departamento de Ensino Superior (DES), da Pró-Reitoria de Ensino (PROEN) do Instituto Federal do Norte de Minas (IFNMG) e como pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Ação sobre Universidade e Educação Superior (Universitátis) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  
 
 
REFERÊNCIA SILVA, Paula Francisca da. Trabalho, docência e autonomia nos institutos federais: as possibilidades da realidade a partir de um estudo no IFNMG. Tese de doutorado. FAE/UFMG: Belo Horizonte. 2022. 270p. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/43955 Acesso: 09 ago 2022. 
 
2 Silva (2022)

Comentários

  1. Parabéns pelas reflexões! É de suma importância esse registro. Não podemos esquece!

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  2. Verdade Paula, eu em março 2020, teria o terceiro módulo presencial do mestrado e foi impossível. A nossa turma só se viu em dois módulos, depois ficou só a saudade... e as dificuldades que você citou aí muito bem.

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