A escrita de si e os registros num diário de bordo: “sentir a fundo é diferente de exagerar”.
Fotografia de estudante do Projeto Diário de Bordo, 2020. IFNMG/CEAD/Campus Diamantina. Estudante Tainá Nobre.
Por: Dayse Lúcide Silva Santos e Ramony Maria da Silva Reis Oliveira
Agradecimentos: Helvécio pela parceria. Gilda, pela revisão. Os alunos pela participação.
O que fizemos no período de afastamento social por força do alto contágio do coronavírus a partir de março de 2020? Assistimos a muitas lives de cantores de nossa preferência, ouvimos músicas que nos tocaram às sensibilidades, aproximamos dos nossos entes queridos e, certamente, várias outras situações a nós se impuseram que “desanuviaram” a lente pela qual enxergamos esse mundo. Uma dessas possibilidades é escrever sobre si.
Diante desse contexto,
idealizamos um projeto de ensino, cuja inspiração para o registro da vida
cotidiana dos estudantes foi o texto de Helena Morley (Alice Dayrell), Minha
vida de Menina, diário escrito por uma adolescente da cidade de Diamantina no
período de 1893 a 1897, no qual a escritora dialogava sobre as “coisas” que via
em seu cotidiano.
Registro inteligente e irreverente dos momentos da vida nesta cidade do interior de Minas Gerais, a atual proposta foi que os estudantes do ano 2020, também fizessem seus registros, considerando os novos desafios que a eles se apresentavam em nosso tempo, qual seja: registar os momentos de isolamento por força da pandemia pela COVID-19. É bem verdade que ao propormos a escrita de si pelos alunos, não tínhamos a noção do tempo e da profundidade que esse momento imprimiria em nossas vidas. Morley nos serviu de inspiração para demonstrar aos estudantes que é possível e é saudável registrar os nossos desafios no dia a dia, bem como contribuir para fornecer novos olhares sobre o registro da vida moderna em nossa região. Dessa maneira, as professoras Dayse Lúcide e Ramony Oliveira, e o servidor Helvécio D’Ávila, orientaram os estudantes interessados em participarem deste projeto a registrar em um diário digital e/ou impresso/escrito os seus sentimentos, angústias, ansiedades e expectativas a respeito desse período de quarentena em curso no país e no mundo. Dessa maneira, o projeto teve início, e no dia 16 de abril de 2020, por tanto, um mês após o fechamento do campus. Para contextualizar esse início, segue um trecho do diário do estudante VBSP, participante do projeto.
Caro amigo diário,
de repente o mundo parou e toda aquela vida agitada paralisou devido a um vírus
com nome de Coronavírus que ficou mundialmente conhecido como COVID 19. Medidas
de isolamento, de segurança e algumas mudanças de hábitos foram tomadas para
prevenir a propagação da doença, que infelizmente causou milhares e milhares de
mortes.
Com isso estou me dedicando aos meus estudos, a leitura, e me permitindo a novas descobertas através do mundo virtual e aproveitando para voltar a fazer poesias e a desenhar que tinha tempo que não praticava. Por hoje encerro, mas amanhã voltarei para falar sobre o que anda acontecendo.
Apoiamos teoricamente na produção do
estudioso Michel Foucault que legou a obra a Escrita de Si, em 1983, asseverando que a escrita é uma prática de
si, é um jogo entre o conhecer e o cuidar, apresentando um poder de subjetivação
impressionante. Roberto Kennedy de Lemos Bastos (2020), professor do IFB,
analisa esse trabalho de Foucault e afirma que a escrita tem uma função
transformadora do indivíduo e, na tradição cristã, possui seu sentido principal
de atenuar os perigos da solidão e realizar “trabalho não apenas sobre os atos,
mas, mais precisamente, sobre o pensamento”.
Criamos o projeto de ensino que ora apresentamos a vocês, cujo intento era de que o estudante se percebesse na construção de si como sujeito de ação racional, aproveitando o momento de afastamento social. Sendo assim, 29 estudantes se interessaram pelo desafio de “olharem e escreverem” sobre si próprios, afinal, “escrever é, pois, “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (FOUCAULT, 1992, p.136). Uma das participantes do projeto registrou em suas memórias sentimentos que apontavam nessa direção.
Sentir a fundo é diferente de exagerar. As pessoas muitas vezes
confundem intensidade com reações exageradas. Se olharmos bem, não tem
necessidade de fazer alarde, as coisas se ajustam por si só. Ser intenso não
tem a ver com o que se demonstra, mas com o que se sente. Então não afirmo que
podemos saber se o outro é intenso ou não (ainda que creia que seja possível
sabê-lo, porque muitas vezes eu o faço, não posso dizer por todos – aliás,
compreender o outro é questão de empatia), mas podemos ser intensos por nós
mesmos. E com isso não quero dizer amar uma única pessoa e depender dela para
viver, não, isso é uma distorção do verdadeiro sentido de amar intensamente.
Quero dizer amar a todos, sem distinção, e entender que cada um tem seu próprio
caminho para seguir, e que muitas vezes as pessoas se cruzarão e os caminhos
também, mas seguirão em frente. Algumas continuarão mantendo contato, outras
ficarão pra sempre na memória. E assim é a vida. (T.N. Diário de Bordo, 2020)
Os estudantes que se inscreveram no projeto realizaram seus escritos de modo digital, optando em não adquirir um caderno/livro/diário impressos. A eles foi disponibilizado uma sala no ambiente virtual do IFNMG por meio da ferramenta pedagógica Diário e, para nossa utilização, denominamos de Diário de Bordo, tal qual ao projeto. O Diário é uma ferramenta utilizada para que o aluno realize um registro periódico referente a determinado assunto, tema de trabalho ou atividade, conforme orientações do professor. Esta atividade é privada e não pode ser visualizada pelos outros colegas. Somente o professor tem acesso ao diário de cada aluno. Para iniciar suas anotações no Diário, ou mesmo editá-las, fizemos um tutorial em que o aluno tornava-se apto à interlocução e escrita de suas percepções, conforme a proposta dada. A ferramenta permitia também anotações, inserção de imagens, de vídeos e de podcasts. A título de demonstração, selecionamos o texto de uma estudante do distrito do Guinda/Diamantina, em 22 de março de 2020, o equivalente ao sétimo dia de registro. Vejamos.
(...) Decidi fazer, no final de cada página, um rodapé com músicas que selecionei das que eu ouvi. Um ponto de partida interessante sobre as músicas (e a musicalidade, em si) é que o gosto (ou a atração, se assim preferires) por cada música em especial, depende do estado emocional e espiritual que (eu) o ouvinte se encontra, ou situações e memórias que este já passou/se lembra. Essa é uma observação que precisa ser vista carefully, pois é o que faz as músicas instrumentais tão valiosas. Cada uma traz à tona mistos de sentimentos, indescritíveis com os adjetivos costumeiros e triviais que temos em nossa mutável língua. Outro tópico sobre as artes: a língua não descreve. Pinturas, desenhos, músicas (instrumentais, principalmente, mas algumas outras também – com exceção do sertanejo universitário e funk, que transmitem sentimentos descritíveis: agonia de perder uma paixão e luxúria), senti-las é não só mais óbvio (eu até diria fácil, mas haveria, aí, uma contradição, já que sentimentos nem sempre são fáceis de lidar) como mais certo. Descrever sentimentos em um papel é como explicar a fome pra quem está empanturrado. É possível, mas a compreensão é outra, tanto pra que descreve quanto pra quem lê. Mais que isso, as compreensões mudam à medida que muda quem o vê, de acordo com as experiências de vida e as sensações momentâneas.
Acontece que nem sempre pinturas e desenhos são a melhor forma de representar um sentimento. Quer dizer, talvez sejam. Planto aqui, então, a semente da dúvida, para colher a resposta. O que quero dizer é: se eu mostrar uma pintura (ainda que riquíssima em todos os detalhes) do mar para quem nunca o viu, esta não será capaz de induzir (quem eu mostrei) a sentir o cheiro fresco de maresia que vem com o açoite do vento e areia no rosto. Sendo assim, pinturas só nos trazem memórias? Desenhos da mesma forma, é claro. Mas, por outro ângulo, músicas também afloram sentimentos já vividos ou vivenciados no momento, não?
O que acontece, muitas vezes, é que quem toca a música pode tocá-la com um sentimento, e quem a ouve captar outro. O mesmo se tem com algumas pinturas, só que em menor escala. De qualquer forma, generalizando, se tem que pinturas/desenhos, quando não explícitos e óbvios (ou seja, quando só têm cores e formas ainda a serem definidas – ou vultos), mostram diferentes sentimentos a quem o vê, assim como as músicas, quando não tem letra para confirmar o que a melodia diz (ou demonstra, a depender de quem ouve). Mas mostram os diferentes sentimentos ou evidenciam experiências e resultados? A conclusão, então, é a mesma que beleza: depende do ponto de vista. E os pontos de vista raramente (não digo nunca ‘cause, as a wise man once told me – or to his readers, doesn’t matter, “never say never”) são os mesmos, isso por que não somos iguais. As diferenças são evidenciadas por meio das artes, entonces? De certa forma, sim. Mas só se é possível vê-las quando há alguém a mais para comparar do seu ponto de vista. Ok, mais uma página. O dia de hoje promete (T.N. Diário de Bordo, 2020).
Para Foucault (1992) a escrita de si pode ser entendida como um cuidado por si mesmo e afirma que: “A sua função (...) é da ordem de uma tekne tou biou, uma arte de viver, que é preciso entender como um adestramento de si por si mesmo” (p. 132). Nesse raciocínio, os registros no diário de Bordo foram bem amplos e diversificados. Os estudantes inseriram fotografias, poesias, músicas, desenhos, charges, clips, dentre outros. A natureza das observações dava conta de anotação sobre relacionamento em família até o registro de leituras ou vídeos assistidos no dia ou na semana, referentes a músicas e à política brasileira de 2020.
O resultado desse projeto nos surpreendeu bastante. Identificamos estudantes com grande capacidade de expressar seus sentimentos, imagens e opiniões; também, vimos àqueles que “travaram” e preferiu abandonar o projeto e silenciaram-se, o que foi prontamente respeitado. As descobertas feitas pelos estudantes adolescentes envolvidos no projeto giraram em torno de inseguranças e opiniões que sobre o mundo e a vida as quais estavam em construção naquele momento. A esse respeito, JCNA afirmou que “parece que o mundo virou de cabeça para baixo... este tipo de situação abala a saúde mental, causando estresse e ansiedade” (JCNA, Diário de Bordo, 03/04/2020).
Percebe-se, com base na leitura realizada nas anotações nos diários, a invasão do desejo de passar pelo momento com certa segurança física e mental – a escrita de si que move um sujeito que almeja a completude e a realização, e como “a arte do viver” mostrou-se em vários momentos. Com relação ao momento histórico e sanitário, a atividade de escrita de si como fomentador da melhoria no tempo (afastamento), bem como a busca pela saúde mental esteve sempre presente. Além disso, percebe-se um certo olhar de tranquilidade, visto que estávamos em início de um período de isolamento sem precedentes e nossos olhares não haviam vislumbrado o tamanho da tragédia que viria.
Havia espaço para retomar e conversar com os estudantes, todavia optamos em não fazê-lo, visto que aquele era um momento ímpar, ao mesmo tempo familiar e individual, vivenciado pelos estudantes. Acreditamos que esse projeto corresponde a um passo ínfimo em nossa forma de ver e lidar com os sentimentos que o mundo nos estimula, porém apresenta certo potencial para dar voz e vez às nossas indagações interiores e colaborar para nos “grafar” no mundo, nos “escrevendo” e expressando a arte contida na vida.
Referências
BASTOS, Roberto Kennedy de Lemos. A escrita
como cuidado de si na obra tardia de
Michel Foucault. Disponível em: http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-escrita-como-cuidado-de-si-na-obra.html acesso em 24/03/2020.
BOSWELL, Catherine. Como escrever um diário pessoal. Disponível em: https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Di%C3%A1rio-Pessoal. Acesso em 20/03/2020
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 129-160.
MORLEY, Helena. Minha ida de Menina. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Disponível em: https://raaletras.weebly.com/uploads/4/9/9/4/49942009/6630207-helena-morley-minha-vida-de-menina.pdf
SCHONS, Carme Regina e GRIGOLETTO, Evandra. Escrita de si, Memória e alteridade: uma análise em contraponto. JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008. Disponível em: http://www.ple.uem.br/jied/pdf/ESCRITA%20DE%20SI%20schons%20e%20grigoletto.pdf
Comentários
Postar um comentário