ADEUS ENSINO REMOTO! ADEUS TECNOLOGIAS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO?

 Por Iza Manuella Aires Cotrim-Guimarães1


        O ano era 1996. Era publicada a primeira edição do livro “Didática: o ensino e suas relações” (VEIGA, 2008), em que Kenski (2008) afirmava, no capítulo de sua autoria: "nos próximos anos, a educação escolar (...) não sofrerá as alterações estruturais e significativas de que tanto precisa" (p.127). Que a escola continuaria “a mesma ainda por algum tempo: seriada, disciplinar, com turmas razoavelmente grandes; professores e alunos interagindo em um mesmo ambiente físico (...)" (p. 128), e ainda, que "para algumas pessoas este modelo parece ser inalterável. Como se fosse inerente ao homem, à sociedade" (p. 128).
        Também em 1996, José Carlos Libâneo apresentava uma palestra que se tornou, posteriormente, um dos capítulos do livro publicado em 1998: “Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educacionais e profissão docente”. Dentre os vários questionamentos que o autor apresentava quanto à necessidade ou não do(a) professor(a) em meio à “tecnologização” (LIBÂNEO, 2007, p. 13) do ensino, destacamos: serão os professores capazes de competir com os recursos e meios de comunicação, tidos como mais poderosos na motivação dos estudantes? Computadores e outros meios tecnológicos irão substituir os professores? (LIBÂNEO, 2007).
        O ano agora é 2020. É decretada pela Organização Mundial de Saúde uma Pandemia Mundial causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e, com isso, o mundo se vê diante de novas relações, modos de vida e imposições, um cenário que afetou todas as instituições da sociedade, dentre elas a escola. De repente, aquela escola tradicional, de professores e alunos interagindo no mesmo ambiente físico, um modelo que até então parecia ser inalterável, como afirmava kenski (2008), se viu diante da necessidade de profunda mudança para atender à nova realidade imposta pela Pandemia. O ensino tradicional, presencial, agora substituído pelo ensino remoto e atividades não presenciais, encontrou pela frente um grande obstáculo dentre vários outros que não vou citar aqui, referente às dificuldades e mesmo falta de conhecimento para acesso e mediação do ensino por meio de tecnologias digitais.
        Longe de mim dizer que a pandemia teve um lado positivo, que nos ensinou isso ou aquilo… De forma alguma seria esse o fio da meada nessa discussão. Mas o fato é que, durante esse período, nos deparamos com novas formas de ensinar (novas aqui no sentido generalizado, claro que muitos docentes já vivenciavam experiências com tecnologias digitais na educação, ensino à distância, etc), novas formas de se organizar o currículo e o processo pedagógico, novas maneiras de se relacionar e comunicar com os estudantes.  De repente, aquela “tecnologização” do ensino citada por Libâneo há mais de duas décadas, tornou-se, de fato, a realidade de todo e qualquer sistema educacional, de toda e qualquer prática pedagógica e docente.  E uma vez diante dessa realidade imposta, há de se convir que essas novas experiências compõem, agora, o conjunto de práticas, vivências e conhecimentos que acumulamos ao longo da nossa atividade docente. 
        Foram momentos difíceis, momentos que demandavam novas aprendizagens, novas atitudes, mas num contexto que nem sempre era propício a isso, já que o próprio processo de aprender e assumir essas novas possibilidades se apresentava em meio à adoção de tecnologias da educação que não eram conhecidas ou do costume de muitos profissionais. Como afirma Arruda (2020, p. 02), “a pandemia diminuiu a capacidade de planejamentos de curto ou médio prazo e levou inúmeros países a implementarem tecnologias digitais nos processos educativos sem que houvesse históricos de desenvolvimento de atividades com essas características antes” 
        Aulas síncronas online, gravação de vídeos, avaliação da aprendizagem por meio de ferramentas digitais, salas de aula virtuais, dentre outros, tornaram-se a realidade dos profissionais da educação, uns já imbuídos nesse universo tecnológico, outros ainda muito distantes. Em pouco tempo, a educação mediada pelas tecnologias digitais passou a integrar a prática e cotidiano dos docentes, estudantes e outros profissionais da educação, quase que num processo de “aprender fazendo”, o que indica que, com o passar do tempo, estas novas aprendizagens foram se aprimorando e se incorporando às suas práticas. Claro que, para aqueles profissionais já familiarizados com essas tecnologias, seja por já aplicá-las regularmente, seja por ter vivenciado alguma formação na área, essa adaptação ao contexto do ensino remoto foi mais branda. Todavia, essa não é a realidade de grande parte dos profissionais da educação no País. Numa pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (GESTRADO/UFMG), somente 28,9% dos participantes afirmaram possuir facilidade para utilizar tecnologias digitais na educação. Já dentre aqueles que não receberam nenhum tipo de formação para utilizá-las, o nível de dificuldade é mais acirrado (GESTRADO/UFMG, 2022). Além disso, no que se refere aos cursos de licenciatura, Arruda (2020) verifica que a temática das tecnologias digitais não é devidamente desenvolvida nestes cursos. 
        Estamos agora em 2022. Lá se vão vinte e seis anos e os apontamentos de Kenski (2008) e Libâneo (2007) continuam atuais, mesmo diante dos significativos avanços tecnológicos que compõem o cotidiano dos estudantes e professores. E, talvez, mesmo diante das novas aprendizagens e práticas advindas do ensino remoto, como relatado anteriormente. Digo talvez, porque, mais de dois anos após o início da pandemia, graças a uma ampla campanha de vacinação e outras medidas tomadas pelos órgãos de saúde, o cenário agora começa a retornar à realidade anterior à pandemia, tida por muitos como “o normal”. Isso inclui o retorno ao ensino presencial, ainda que em meio a medidas profiláticas e outras estratégias para adaptação e transição a esse tipo de ensino. Mas é justamente esse discurso do “normal” que me assusta, e por isso apresento os seguintes questionamentos quanto a esse retorno ao ensino presencial e ao que muitos denominam de retorno à normalidade:  o que seria, de fato, essa normalidade no contexto educacional?  As experiências, práticas e conhecimentos que adquirimos durante o desenvolvimento do ensino remoto compõem essa normalidade que tanto ansiamos retomar? Damos adeus ao ensino remoto. É também um adeus às tecnologias digitais na educação?
        O(a) leitor(a) pode confirmar, agora, que o título deste texto é uma paráfrase ao título do famoso livro de José Carlos Libâneo: “Adeus professor, adeus professora?” E por isso lanço mão do próprio Libâneo (2007) para destacar alguns conhecimentos e habilidades que o autor indicou, naquele “longínquo” ano de 1996, mas que diante da realidade verificada pela pesquisa do GESTRADO/UFMG (2022), parecem ainda exigências distantes da realidade. Segundo Libâneo (2007, p. 10):
O novo professor precisaria, no mínimo, de uma cultura geral mais ampliada, capacidade de aprender a aprender, competência para saber agir na sala de aula, habilidades comunicativas, domínio da linguagem informacional, saber usar meios de comunicação e articular as aulas com as mídias e multimídias.

        Ao retornar ao ensino presencial, vamos nos deparar com uma escola onde as salas de aula mantêm os mesmos modelos de arranjo físico do início do século XX (RODRIGUES, 2018), adequados, portanto, ao ensino centrado na figura do professor, unilateral, linear e primordialmente expositivo. Nesse cenário, como responder às exigências tão bem colocadas por Libânio (2007)? Como se apropriar dos conhecimentos e práticas que adquirimos no contexto do ensino remoto, especialmente quanto ao uso das tecnologias digitais da educação? 
        Que os professores serão substituídos pela tecnologia, vimos que não passa de ficção. O ensino remoto nos ensinou que a mediação do professor, seu planejamento e orientação são imprescindíveis para o processo de ensino e aprendizagem, ainda que fortemente mediado por tecnologias digitais. Também aprendemos que essas mesmas tecnologias, especialmente as ferramentas digitais na educação, podem contribuir para a criação de espaços de compartilhamento de materiais, conhecimento e experiências; para estreitar a comunicação entre professores e estudantes; para promover a socialização e aprofundar o conhecimento de determinados temas, mesmo quando os interlocutores estão muito distantes; para desenvolver atividades colaborativas, inclusive em tempo real; dentre várias outras possibilidades.  
        Sabemos que a utilização dessas ferramentas e outras tecnologias por vezes foi complicada, especialmente pela dificuldade dos estudantes para acessá-las e dos professores para orientá-los quanto à sua utilização. Entretanto, sua apropriação no ensino presencial apresenta vantagens que propiciam sua implementação de forma muito mais descomplicada: primeiro, pela experiência adquirida por professores e estudantes quanto à utilização das tecnologias digitais quando no ensino remoto. Segundo, pela possibilidade de orientação presencial e direta, pelos professores, facilitando o acesso e manuseio dessas ferramentas.
        Por fim, chamo atenção para o seguinte aspecto: a utilização dessas tecnologias per se não implica, necessariamente, a melhoria da qualidade do ensino e/ou o êxito dos estudantes. É preciso se ter em vista que uma escola comprometida com a transformação social deve propiciar as condições para a transmissão e assimilação do saber sistematizado, como afirma Saviani (1997). E no cumprimento de sua função política, a competência técnica dos professores se traduz em elemento de mediação:
A competência técnica, o saber fazer bem, é a passagem, a mediação, pela qual se realiza um dos sentidos políticos em si da educação escolar. É com ela, a competência, e com ele, o sentido político em si, que pretende trabalhar na interpretação dos dados empíricos acerca das representações dos professores, tomando-os como uma das condições escolares (MELLO, 1982 apud SAVIANI, 1997, p. 41).
        Muita coisa mudou desde que Mello (apud SAVIANI, 1997) escreveu sobre essas questões, mas não o conceito de competência técnica e seu papel no processo educativo: no contexto atual, em que as tecnologias digitais integram de forma tão contundente o nosso cotidiano, essa mediação pela competência técnica se faz, também, no terreno das tecnologias digitais.

1 - Texto elaborado a partir de palestra ministrada pela autora na aula inaugural do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT) do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), no dia 08 de abril de 2022. 

REFERÊNCIAS:

ARRUDA, E. P. Educação, educação a distância e tecnologias digitais: perspectivas para a educação pós-Covid-19. Pensar a Educação em Revista, v. 06, n. 01, p. 01-13, mar./mai. 2020.

Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (GESTRADO/UFMG). Trabalho docente em tempos de pandemia: relatório técnico. Belo Horizonte: UFMG. Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/images/cnte_relatorio_da_pesquisa_covid_gestrado_v02.pdf Acesso em: 06 abr. 2022.

KENSKI, V.M. O Ensino e os Recursos Didáticos em uma Sociedade cheia de Tecnologias. In: VEIGA, I. P. A. (Org.) Didática: o ensino e suas relações. 13 ed. Campinas, SP: Papirus, 2008, p. 115-126.

LIBÂNEO, J. C. Adeus professor, adeus professora? novas exigências educacionais e profissão docente. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

RODRIGUES, L. E. M. J. O Ambiente Físico Escolar e sua influência no aprendizado dos Estudantes da Escola do Século XXI. In: CUCHER, M. (ed.). Samba and Sauna: the implementation of innovative participatory pedagogies by Brazilian Educators. Tampere: Kirjapaino Hermes Oy, 2018. p. 27-44.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-crítica:  primeiras aproximações. 6 ed. Campinas - SP: Autores Associados, 1997.

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